"Duas tábuas e uma paixão"

19-06-2024

Esta frase de Molière podia bem ser o mote do Festival de Teatro de Almada. Foi citada por Rodrigo Francisco, Director Artístico desta Festa do Teatro que acontece entre 4 e 18 de Julho há 41 anos. A apresentação da programação aconteceu num cenário entre o mar e a história, no Convento dos Capuchos, a caminho das praias da Costa de Caparica.

Quem pensar que o Festival tem um fio condutor ou está subjacente a um tema, desengane-se. Como refere Rodrigo Francisco, a ideia é "decompartimentar" e refere ainda que "estes espectáculos não têm nada em comum a não ser a excelência de quem os faz e a paixão". Na programação está patente uma afinidade clara e assumida com o Festival de Teatro de Avignon, do qual o Festival de Almada é "filho", perdoem-me o abuso filial.

Há, no entanto, algumas temáticas que andam na espuma dos dias, como a identidade de género, o assédio, a saúde mental, descolonização ou reflexões sobre o papel da mulher, que atravessam a programação. Mas também há Cabaret com Miss Knife, o alter-ego em versão drag queen do actor francês Olivier Py, há clássicos descontruídos como "La tempesta", com base na peça "A Tempestade" de William Shakespeare, pela Compagnia Marionettistica Carlo Colla & Figli, aqui numa versão de Eduardo De Filippo em napolitano do século XVII, (terá legendas, não há motivo para preocupações. Nem um "italiano vero" conseguiria decifrar o texto). A última obra deste criador italiano que pouco tempo antes de morrer gravou todas as vozes das personagens que estarão nas "bocas fictícias" de cerca de 150 marionetas numa escala quase real.

Já que estacionei em Itália falo-lhe de Tchecov. Confuso? Sim, Tchecov era russo, bem sei, mas é de Milão que chega não um, não dois, mas três "Tchecovs". Não vai provocar uma "Crise de nervos, três actos únicos de Anton Tchecov", mas algumas gargalhadas. Nada mais nada menos do que os contos do autor enquanto jovem: "Os malefícios do tabaco", "O urso" e "O pedido de casamento". A encenação é do consagrado encenador alemão Peter Stein que é, por assim dizer, um "habitué" do Festival. Citado por Rodrigo Francisco, Stein diz sobre o Teatro: "Há pessoas que se interessam em pôr em cena a modernidade, eu interesso-me em pôr em cena a alma humana." Provavelmente será um Tchecov como nunca o viu.

A companhia é de Itália, Change Performing Arts, mas os criadores de "Relative Calm", não são. Será inevitável falar do espectáculo de Robert Wilson e da coreógrafa Lucinda Childs. Esta obra junta os dois criadores que há 40 anos fizeram este mesmo espectáculo, mas que surge agora reformulado. Diz Robert Wilson que é um "espectáculo unificado de dança, música, luzes e imagens." A vinda de Robert Wilson a Portugal cria sempre muitas expectativas. Não só para o público português como para o próprio que já desenvolveu várias criações no nosso país.

A programação internacional não se fica por Itália. Da Galiza, Inglaterra e França também chegam espectáculos "descompartimentados". E ainda do Líbano, o "espectáculo de honra". Todos os anos há um espectáculo escolhido pelo público para regressar no ano seguinte. O público decidiu e está decidido! O monólogo "Jogging" é um texto interpretado pela actriz Hanane Hajj Ali, no qual aborda a condição feminina na sociedade árabe, a corrupção, o seu mundo interior e "encarna uma Medeia clássica", não deixando o humor perdido nesta corrida.

Por Avignon, o festival actualmente dirigido pelo português Tiago Rodrigues, passou também o espectáculo "Sans tambour" com encenação de Samuel Achache. É teatro, mas também é vaudeville, cabaret, burlesco e absurdo.

Falando em Tiago Rodrigues, o seu texto "Entrelinhas", protagonizado por Tónan Quito aparece como um espectáculo de substituição de uma produção do TNSJ cuja estreia foi adiada. Também este texto do autor e encenador teve várias contrariedades e "por motivos misteriosos falhou todos os prazos". Das contrariedades se faz arte e assim nasceu este espectáculo que mistura realidade e ficção, Édipo e cartas de um preso para a sua mãe. Promete…

Já chegámos a Portugal e a viagem pelas tábuas está a acabar. Os Artistas Unidos também estão acabar a sua estadia no Teatro da Politécnica, mas, espera-se, que não acabem as suas criações. Para já terão espaço no Festival de Almada com "Remédio", um texto de Enda Walsh estreado em 2023 e que volta agora aos palcos. A saúde mental é um dos temas abordados na peça e que nunca se deve deixar de falar. Mas há também "meta-teatralidade" como refere António Simão, encenador.

Sendo a saúde mental uma causa cada vez mais comum, a companhia Causas Comuns traz-nos "Fonte da Raiva", um espectáculo com texto e encenação de Cucha Carvalheiro que se passa numa aldeia portuguesa nos anos 60 e evoca memórias da autora, encenadora e actriz. O texto é uma adaptação livre do texto "Danças a um deus pagão" de Brian Friel, mas também remete para o ambiente Thcecoviano ou para Lorca e a sua Casa de Bernarda Alba. No fundo, anda tudo ligado.

O Bando, que se instalou em Palmela há uns anos, vai até aos vizinhos de Almada apresentar "1001 Noites - Irmã Palestina". Já com meio século de existência, esta companhia que nos apresentou espectáculos que ficaram para a história, como "Trilhos", "Amanhã", "Os Bichos", entre tantos outros memoráveis, chega a 2024 com uma criação em quatro passos, dos quais veremos o segundo que é uma criação a quatro mãos: as do encenador João Brites e da coreógrafa Olga Roriz. É teatro, mas também é dança. Há actores, mas também há bailarinos. E uma orquestra. Há muito para apreciar, pois claro.

"Mãe Coragem", texto inesquecível de Bertold Brecht, estreado há pouco no CCB, com a actriz Maria João Luís como protagonista e na encenação de António Pires traz agora uma nova leitura completamente actual, pois, como refere Pires, "o texto podia ter sido escrito ontem". O encenador quis "pôr em cena somente aquilo que permitisse que as pessoas ouvissem as palavras de Brecht."

Como sempre acontece no Festival de Teatro de Almada, há homenageados. Este ano a Companhia de Teatro A Barraca é quem merece a honra desta homenagem. Maria do Céu Guerra e a Barraca são indissociáveis. A actriz e encenadora lembrou o sonho lindo que foi a criação da companhia, com a "vontade de levar o teatro a toda a gente". Com emoção e o peso certo em cada palavra, Maria do Céu Guerra partilhou memórias de camaradagem, conversas, experiências inesquecíveis e noites deslumbrantes, como aquela em Folgosinho, em que após o fim de um espectáculo, de regresso a Lisboa, viram uns quantos troncos no meio do caminho. Quando sairam da carrinha viram algumas pessoas que aos poucos se mostraram e perguntaram o que se passava. Os locais responderam que tinham posto os troncos "para eles não sairem porque queriam ver o espectáculo outra vez amanhã".

Mas o Festival de Teatro de Almada não é "só" Teatro. É também Concertos, Exposições, Conversas, Cursos e Encontros. Sobretudo encontros entre um público muito especial e artistas, que, só por si, são seres especialíssimos!

Como nos disse Rodrigo Francisco, o programador - ou mediador, como gosta de dizer - : é bom "estar com aqueles que pensam de uma forma diferente da nossa".

A programação é muito vasta e não cabe toda aqui, mas pode ser consultada na página do Festival.

Termino esta crónica com uma frase que podia ter escrito se tivesse o talento de Rui Cardoso Martins que tão bem intitulou o curso que vai partilhar: "Ler muito, ver espectáculos, viver mais".


Para mais informações consulte:

www.ctalmada.pt

www.facebook.com/festivaldealmada

@festivaldealmada


© 2024 A Vida Está na Rua. Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Webnode Cookies
Crie o seu site grátis! Este site foi criado com a Webnode. Crie o seu gratuitamente agora! Comece agora